MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. [Der Mann Ohne
Eigenschaften] Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth. 1930-1942.
Robert Musil (1880-1942)
Escrito por Robert Musil e publicado entre 1930 e 1942, o
Homem sem qualidades se passa no Império Austro-Húngaro, chamado aqui de “Kakânia”
às vésperas da 1ª Guerra Mundial; nosso anti-herói, um matemático, resolve
passar um ano de absoluta imobilidade e afastamento, puramente reflexivo. A
parte publicada desse livro transcorre neste ano e se concentra em encontros do
protagonista com um catálogo de figuras representativas do mundo de idéias da
época: Assim, somos apresentados a histérica, a ninfomaníaca, o artista
burguês, a diletante, o funcionário público, o representante militar, o ricaço
filósofo, o membro da aristocracia governante, o nacionalista, etc todos mais
ou menos envolvidos em uma congregação auto-denominado de “Ação paralela”, um movimento
com o objetivo de encontrar alguma ação com o intuito de comemorar o
aniversário do Imperador Francisco José em algum tipo de ato prático, não bem
especificado. De fato, boa parte do livro se trata das reuniões de salão em que
se tenta, desesperadamente, encontrar um objetivo ou razão de ser para a tal
ação no turbilhão de idéias em que os personagens estão inseridos; a primeira
guerra mundial é de certa forma o pano de fundo e a consequência óbvia do
desenvolvimento do livro, que com um humor mordaz e uma fúria analítica
comparável somente à de Proust, faz inventário de uma era em que o desencanto
com o mundo das idéias é expresso pelo esgotamento tanto das idéias da
modernidade quanto do romanticismo, sentimentalismo ou do conservadorismo da
época.
A descrição usual que se dá ao livro, de não ter
notavelmente muita trama, certamente é verdadeira; porém o primeiro volume é
impecavelmente composto, com um clímax que lembra os confrontos de ideologias
de Dostoiévski, quando Ulrich, o protagonista é confrontado com praticamente
com todas as correntes ideológicas expostas no livro de forma sucessiva. O
segundo volume, não terminado, é talvez mais centrado em um fio narrativo mais
constante (no caso, o desenvolvimento do “incesto espiritual” de Ulrich com sua
irmã recém-encontrada Agata), com algumas digressões sobre o desenvolvimento da
ação paralela.
Mas o que separa esse livro de tantos outros a comentar o
período, é certamente sua prosa altamente complexa, repleta de digressões,
reflexões e análises sobre o estado de espírito da época; a narrativa parece
disposta a analisar obsessivamente cada expressão espiritual de forma a dividi-la em seus mais
ínfimos componentes, derivando daí uma reflexão altamente abstrata e às vezes
impenetrável, mas não desprovida de sarcasmo e bom humor; não por acaso, a edição brasileira em que li o livro, termina
subitamente durante a leitura do diário do protagonista, que tenta analisar e
hierarquizar sentimentos, sensações e a relação de sua existência a priori ou
determinada pelo indivíduo ( e tem gente que reclama das pregações do Padre
Zózima em Os irmãos Karamazóvi!); esse é o tipo de livro em que até mesmo os
adultérios elegantes de madames estão relacionados a considerações sobre sua
posição em relação ao tipo de idealismo que elas pretendem exibir na sociedade.
A título de exemplo vai aqui um trecho em que Musil comenta
sobre a situação da monarquia dual à época:
“Hoje em dia agimos como se o nacionalismo fosse invenção dos
fornecedores dos
exércitos, mas deveríamos tentar uma explicação mais ampla, e a Kakânia
fornecia uma
importante comprovação para tal. Os habitantes dessa dupla
imperial-real monarquia
imperial e real enfrentavam uma pesada tarefa; deviam sentir-se
patriotas imperiais e reais
austro-húngaros, mas ao mesmo tempo do reino húngaro ou do real império
austríaco.
Seu lema predileto face a essas dificuldades era: “forças unidas!”
Chamava-se a isso
viribus unitis. Os austríacos porém precisavam de mais forças para isso
do que os
húngaros. Pois os húngaros eram antes e depois de tudo apenas
húngaros, e só secundariamente outras pessoas que não entendiam sua
língua os
consideravam austro-húngaros; os austríacos, ao contrário, antes de
tudo, originariamente,
não eram nada, e segundo seus dirigentes deveriam sentir-se
indiferentemente austrohúngaros
ou austríacos-húngaros — nem ao menos havia uma expressão adequada para
isso. Tampouco havia a Áustria. As duas partes, Hungria e Austria,
combinavam entre si
como um casaco vermelho-branco-verde com uma calça preta-e-amarela; o
casaco era
uma peça isolada, a calça era o resto de um terno preto-e-amarelo que
já não existia mais,
pois fora separado em mil oitocentos e sessenta e sete. A calça
“Áustria” chamava-se
desde então, na linguagem oficial, “reinos e países representados no
Conselho do Reino”.
O que naturalmente não significava coisa alguma, e era um nome feito de
nomes, pois
também esses reinos, por exemplo os reinos tão shakespeareanos da
Lodoméria e da
Ilíria, há muito não existiam mais, e já nem existiam quando ainda
havia um terno pretoe-
amarelo completo. Por isso, se perguntavam a um austríaco o que ele
era, naturalmente o homem não podia responder: sou de um dos reinos e países
inexistentes representados
no Conselho do Reino. Assim, preferia dizer: sou polonês, tcheco,
italiano, friulano,
rético, esloveno, croata, sérvio, eslovaco, ruteno ou valaco, e era
isso que chamavam
nacionalismo. Imagine-se um porquinho-da-índia, que não sabe se é porco
ou roedor,
portanto um ser que não tem nenhum conceito sobre si mesmo, e
entender-se-á que
eventualmente ele possa sentir um medo enorme até do próprio rabinho;
mas era nessa
relação que se encontravam os kakanianos uns com os outros, e
encaravam-se com o
pânico horror de membros que, unindo as forças, impediam uns aos outros
de serem
qualquer coisa. Desde que existe a Terra não houve uma criatura que
tivesse morrido de
um lapso de linguagem, mas deve-se acrescentar que, mesmo assim, a
dupla monarquia
austro-húngara e austríaca e húngara acabou arruinada por ser
impronunciável."
Homem sem Qualidades é mais um livro de um subgênero comum nos séculos
XIX e XX: Do tipo que não faz porra nenhuma. Dessa forma, Ulrich entra na
galeria dos personagens que incluem Oblomov, Bentinho, Brás Cubas, o narrador
de Proust, etc.